sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Cartografia


Não te faço tolas juras de seresta
Nem te peço que fiques ao meu lado
Pois, te amo e sei que eu sou culpado
Das laranjas sou aquela que não presta

Dos trabalhos sou a servidão escrava
Das riquezas sou a própria mendicância
Dos saberes sou a bruta ignorância
Dos prazeres sou aquele que deprava

Eu pior te odiarei, melhor te amando
E minh'alma se conforta na enseada
Onde, em toda revoada, sou o bando

Te farei jura maior, ó minha amada
Passei tantas outras vidas te amando
E nunca, e sempre, e tudo, e nada.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Asno rei

Coração por que fazes versos tolos?
São tuas dores cova rasa ou precipício
Que da pena, que escreves, tira o vício
Ou quem lê os teus versos tem consolo?

Tolo eu, que te dei toda autonomia
Dei-te as rédeas desta alma extraviada
Coube à minha, bruta e tola, mão pesada
Escrever estas bobagens tão sombrias

Coração por que lhe dei rédea tirana?
Se um outro coração de ti se ufana
E te faz amargamente andar sozinho

E porque te fazes sempre de indolente
Fazes a mim também, teu servo obediente
Seguirei, meu coração, o seu caminho

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Aresto


"Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube."
Meu ser evaporei na lida insana - Bocage

Mil sentenças estão à minha espera
Nos olhares onde trânsito em julgado
Me condenam pelo crime sem pecado
Por eu ter no coração uma quimera

Coração que ainda bate raso e puro
Já me pões a danar o meu juízo
Quando lembras o que é o paraíso
De distintas noites mortas o sussurro

Ainda escuto o estalar daquelas horas
O meu peito grita: Vem! vem sem demora!
Mas, pela sua sentença, ninguém ouve

Vivo à cada madrugada até a aurora
Consolando o meu peito que ainda chora:
"Saiba amar o que viver ainda não soube"

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Inútil perdão


Me perdôo, me perdôo
Sem mistério, nem alarde
Nem sentimento de enjôo
De mim tive piedade

Foste mar, foste guarida
Fora pedra de tropeço
Nem cismar foste esquecida
Lembrança que não esqueço

De mim tive piedade
Na vastidão eu ecôo
Rasguei com tenacidade
Tudo aquilo que amontôo
Te direi toda a verdade
Me perdôo, me perdôo

sábado, 12 de janeiro de 2013

Doce sabor do meu pranto

Ai, aflição sem por quê
Sem motivo ou razão
Me aperta o coração
Que sensação demodê

Ai, que sentimento de morte
De mal presságio ou agouro
Dentro do peito um estouro
Que faz valer o mais forte

Ai, que tragédia é a sorte
Se morro, ai que engano
Se me queixar de minha morte

Ai, que tragédia é a vida
Se vivo no desengano
Vivo à regar despedidas

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Soneto - Chico Buarque


Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio
- Chico Buarque de Holanda

domingo, 6 de janeiro de 2013

Maré


E vem maré, e vem maré
Afoga a areia da praia quando quer
Afoga e leva meus pesares se puder
E vai maré, e vai maré

Vem a lua, pelos ares, me lembrar
O que tanto, tanto tentei esquecer
Velejar não poderei mais neste mar
E venho agora a terra firme conhecer

Quem quer motivos para ficar,
arranja outros para partir.
Quem quer motivos para rir,
arranja outros para chorar.
Que pensemos mais em nossos corações
E que a vida seja menos motivos, e mais emoções.